luís soares barbosa
e fico só e falo com as sombras
Prémio Literário Maria Ondina Braga.

Publicado pela Câmara Municipal de Braga, em Outubro de 2016.
Design de Luís Cristovam.

(posfácio)

lisboa, 1965

nunca soube ao certo porque comprou os lírios
bolbos escuros
secos
onde as mãos se perdem

entretanto alugou casa é tradutora
(as línguas um mister de ourives)
escreve em segredo depois da madrugada
desliga o telefone dá lições de inglês

por isso hoje veio a contragosto
quase por dever de ofício que a literatura
não é de todo imune a estas cerimónias
traz de seda cabaia onde se oculta
a perfuração abrasiva do olhar
o rosto suspenso de um silêncio
à espera de um longe onde morar

escolheu uma pulseira de tartaruga
antigo sortilégio de um amor goês
brilha-lhe a pele por dentro
das palavras recolhe a íntima mudez

carta de moledo, outubro, 1971

chega em outubro
comove-a o quarto enorme lençóis brunidos
a janela de guilhotina sobre um correr de hidrângeas

na pensão repara janta-se cedo
logo que a luz vencida contra o mar
se cala

tão incerta a aurora quanto fugaz o medo
olhos opacos a névoa interminável

comove-a o ranger do soalho
o chá de lúcia-lima quando a tarde acaba
a visitação das dunas se da chuva
emergem como um detalhe fútil

explicar-lhe-ão mais tarde que o tempo é um negócio
e escreverão como um insulto:
a tudo chegou tarde
e no entanto sabe que cada silêncio antecipara a morte
e fora em si a idade sempre inútil

a revolta das palavras, 1975

há um ponto neste livro onde o conto é mudo
e a narrativa se contrai na vertiginosa progressão
da exposição solar

quando o termina
pressente no seu tempo um tempo que a demora
lhe é alheio e a que contudo só
intermitentemente escapa

escrevem-lhe solicitam-na querem saber se
e quando as urgências
multiplicam-se o país perturba-a
de uma forma epicamente pública
como nunca até então acontecera

(só os olhos escutam sob o rigor da idade
a discreta hesitação da liberdade)

explica-me que uma vez por vida a história
aflora triunfante ao limiar da pele
que nessa altura as palavras se aceleram
e as sílabas se distendem num descerrar de vísceras
incomoda-a profundamente tal impertinência
dias que se sucedem excessivos
e um cortejo de heróis acidentais

sua escrita persegue então mais húmil rumor
a transparente espessura dos pinhais

pequim, leitorado de português, 1982

ainda hoje não sabe porque veio
quem a tomou nos braços
que faz afinal nesta cidade onde o poema é mudo
e o inverno queima

trouxe-a um pássaro diz
ou então o medo
sua banalidade insidiosa
que bem perto de si reconheceu
talvez apenas um repouso busque
dos dias como destruições
onde sua pele de seda anoiteceu

viera em todo o caso
pequim nesta altura um torpor voaz
acordam-na cedo
e está só se a palavra tomba
trazem-lhe chá verde um fio de canela
reverente o riso em seu redor
as mãos solícitas

e no entanto em si esta sepultação

não tardará chora
por uma única vez um choro antecipando
o caminho dos grous
como lágrima perfeita deposta sobre jade

morrer porém não a perturba
tão perecível o pássaro da lenda
quanto fugaz afinal a eternidade