Imagem da capa: ilustração de Catarina Soares Barbosa [2022]
não são lugares, luzeiros, estorninhos,
tardes de chuva onde os dedos pousem
ou o olhar se cale.
não são ecos, eixos, gradações,
imagens soletradas, palavras em excesso,
quando o corpo cai.
colecciono, porém, as irregulares ondulações da pele,
se é propícia a fuga, o sítio onde
junto, às vezes, rios,
uma mulher tangendo as águas divididas,
seu rebanho volúvel e fantástico.
colecciono em chama a carne viva.
depois da guerra,
quando do abismo se ergueu o pensamento
e a cidade recuperou tribunos,
sal, vez,
e maledicência,
kritios retirou da pedra artéria após artéria,
a linha abdominal, o falo, a claridade.
o torso esculpiu no vazio restante,
separou os braços e fechou-lhe os dedos para que
se erguesse
onde o sangue rompe.
só mais tarde em nós o rapaz falou.
amadureciam palavras em seu manto alado.
porém, à criança que pela mão cuidava,
após uma outra vez, explicava
as minuciosas gradações do sul
e certas coisas únicas e difíceis,
como ninho de carriça negra alumiado
e a solidão por dentro.
fora apenas uma mulher moderadamente bonita
embora o seu riso escorresse na pele das montanhas
e o corpo lume
esculpido em segredo pelo vento.
assim, quando se impôs a noite,
rumorejante ainda em sua majestade tardia,
desabitada a sombra ela deixou,
seu lugar voraz, o ventre jovem onde a luz
procria.
oblíqua a noite cresceu sobre seus pés alados
para que as palavras se abrissem, atingido o verão,
as vísceras expostas ao olhar dos dedos.
cedo chegara ao interior do dia
e nele se sentara com recato
encenando sózinha uma história de sufis.
no rebordo da escada,
sacos de sarja,
de onde vende cartas de adivinho,
lenços baratos e outros sortilégios,
óleo de hena para cabelos negros,
avelãs em mel como afrodisíaco.
viera esta manhã no primeiro ferry de üsküdar.
a luz quase rasante sobre a noite,
os passos rápidos,
quando a concreta fluidez dos olhos diluía
o pó que a cobria
e um pequeno brilho de água
de novo erguia
sua breve idade
entre os punhais.
não,
não era uma princesa como outrora houve:
não a saudaram palavras estudadas,
adulações, gestos maiores,
mundanos sobressaltos.
não transpusera, como então, a porta do império
nem aguardara, sob a cúpula do mundo,
o soar magnífico das trombetas.
tampouco esperou perfumada a coroação.
viera esta manhã sozinha,
(no primeiro ferry de üsküdar)
mordia os lábios à medida que a luz crescia
entre caixas de cravinho e açafrão,
estrelas de anis e cardamomo,
em sua minúscula minúcia fugidia.
nada esperava:
fora aberto a pulso o nome que a dizia.
na verdade, tinha oito anos,
não fora ainda coroada,
embora um cortejo de anjos se apressasse
e um fio de esmeraldas descesse dos seus dedos
(as unhas sujas, o pulso em ferida),
onde toda a glória de bizâncio.
não,
nenhum homem se dobrara ao murmúrio dos seus passos,
nenhuma mulher emudecera perante o seu esplendor,
não fora ungida, ainda:
vende lenços azuis, pó de curcuma, bagos secos,
adormece depois onde o amor.
e, no entanto, apenas o frágil perfume
do seu corpo triste
contém,
sobre as horas,
o dilúvio.
sou abrigo nocturno para uma pequena confraria de palavras,
dou-lhes sopa quente,
passajo-lhes as meias,
mostro-lhes, no inverno, as sílabas que o vento
deposita nas montanhas.
outras palavras há que me perseguem no escuro,
febris, hesitantes, as mãos crispadas,
conheço-as pelo puro derrube dos seus ecos,
os gestos sem manhã,
e, no entanto, mantenho com elas, sempre que posso,
um mediano comércio de relíquias:
nem todos os séculos foram breves.
entre as que o mar não viu, poucas recordo:
algumas ensurdeceram nas chancelarias,
outras,
mais esforçadas,
treparam a custo as lombadas e os dedos
para figurarem com orgulho nos talões de compra
e na história da literatura.
as que sobram,
sobretudo as cotadas em bolsa
e todas quantas se enfeitam para os leilões,
têm, em regra, arestas incómodas
e, quase sempre, um coração desarticulado.
algumas aparecem de súbito,
vindas de longe,
carregam bagagem pesada
e apostilhas de hotéis que fecharam há décadas.
na maior parte dos casos, porém, modelo-as cuidadosamente
em lava ou lume ou fome
e desapareço nelas antes do seu
ser-palavra estremecer.
para cada uma, ergo um abrigo a arder.
Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva,
Braga, 21 de Maio 2022.
Apresentação por Eduardo Jorge Madureira.
Livraria Rimas & Tabuadas,
Guimarães, 5 de Junho 2022.
Apresentação por José Rui Teixeira